Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem (...) O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta, um verme. ( "Nosso Tempo" - Drummond)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Crônica Angustiada

Há tempos venho pensando num titulo para um livro que grita por sair de minha mente. Um livro sobre escola, sobre o cotidiano da escola, e tudo o que eu, como professor, com bacharelado e licenciatura em sociologia, mestrando em Sociologia da Educação na Unicamp, e, antes de tudo, um profundo angustiado perante o mundo, sobre como eu vejo, sofro, e penso a Escola no Brasil.
Dos títulos que rotineiramente me vêem a cabeça, para este livro, muitos deles expressam esta minha angústia, outros a minha experiência como professor substituto da rede estadual de São Paulo, outros falam por si próprios: “Crise na Escola”, “Guerra na Escola”, “O livro Negro da Educação Brasileira”, “Professor, Missão: Mediar Conflitos” “Manifesto contra A Estupidez e a Hipocrisia dos Educadores Brasileiros”.
Já expressei por mais de uma vez no curso de Pós-Graduação, para os amigos e irmãs que tem filhos, que se tivesse um filho ou filha, em idade escolar, sobretudo em idade de freqüentar a quinta-série, onde estou dando aula atualmente, de que não permitiria meu filho freqüentar nenhuma escola, seja particular ou pública. E posso dizer isso com conhecimento de causa. Lógico, há heróicas exceções espalhadas pelo Brasil. Mas a escola que falo e penso aqui é da realidade que vivo. Eu e 99% da população, exagerando um pouco.
Na verdade, boa parte dos educadores também compartilha desta minha opinião. Não de modo tão radical, claro. Mas boa parte das cadeiras das grandes escolas particulares de ensino fundamental e médio são ocupadas por filhos e filhas de professores e diretores das escolas públicas. É a mesma lógica hipócrita que é quase uma regra no Brasil: os administradores dos serviços públicos, responsáveis por ele, não são usuários deste mesmo serviço. Tanto é que causaria espanto a gente pensar que um prefeito, um secretário da saúde, o governador, levassem seus filhos aos SUS, ou matriculassem-nos nas escolas públicas mais perto de suas casas. Isso, para mim, é a maior prova da incompetência administrativa, do descaso e da falta de caráter que este agente público tem em relação ao seu trabalho, e da concepção perversa que nós, brasileiros, temos do que é serviço público, do que é política, enfim, do que é a construção de uma Nação que trabalha junto para crescer junto.
Não sei se alguém já se atreveu a fazer uma pesquisa quantitativa e qualitativa sobre isso, sobre esta cultura brasileira de administrar e trabalhar nos serviços públicos mas não ser seu usuário. Mas seria extremamente interessante e revelador do caráter que damos ao sentido de Nação descobrir a porcentagem dos filhos destes administradores e executores dos serviços públicos que usam este mesmo serviço, e além de procurar alguma explicação histórico-social-econômica para esse descalabro. Quem sabe assim tomaríamos consciência do que estamos fazendo com este país, com nós mesmos, e com o futuro.
Mesmo sendo aluno da Faculdade de Educação da Unicamp, tenho profundos pudores de perguntar isso aos meus colegas de pós-graduação, e sobretudo aos professores – elite da educação nacioanl. Quantos deles tem filhos e os matriculam em escolas públicas e particulares. Quantos deles, por uma questão política, por uma questão de honra e de coerência, se recusam a usar da lógica capitalista da livre escolha no mercado, e matriculam seus filhos em escolas públicas, mas ao mesmo tempo procuram intervir para que esta escola seja modelo de uma Nova Escola.
Porém, não esqueço a fala de uma colega da faculdade, que é professora da rede estadual do Paraná, em uma escola que ela própria considera progressista, mas que tem seu filho matriculado em uma escola particular. Além da coragem dela de assumir esta contradição, esta professora apontou algo que pelo menos demonstra um sentido para este ato, a de que na escola particular, haveria um espaço maior para a diversidade no currículo, enquanto que na escola pública, toda a prática de ensino estaria condicionada aos devaneios das políticas partidárias, da própria estrutura do corpo docente, e dos problemas recorrentes da escola pública: alta mobilidade dos professores, projetos políticos pedagógicos imposto pelos governos, e que não tem nenhuma ressonância com a realidade escolar, etc.
Esta é uma grande justificativa, da qual sou obrigado a concordar. Mas a mim só reforça a questão da alienação da intervenção política que nós, agentes deste serviço público, estudiosos e pesquisadores dele, deveríamos ter: assumir esta realidade e levar às últimas conseqüências a coerência entre nossa formação e valores e nossa prática – ainda que manter esta coerência seja lutar sozinho contra o Estado.
Como ninguém luta sozinha contra o Estado, penso que se tivesse um filho em idade escolar, não deixaria ele ir à escola. Procuraria eu mesmo ensiná-lo em casa, e procurar outras atividades paralelas, como esporte, por exemplo, a fim de que se realizasse sua sociabilização que seria a outra finalidade da escola obrigatória. Seria pois, o que vejo nas escolas por onde passo, é um terrível palco de uma sociedade corrompida, onde os pré-adolescentes já são atores.
É muito simples dizer que o problema são os alunos; como nós, professores estamos tão acostumados a pensar. Não que eles sejam santos. Mas nós, professores, não podemos nos redimir de nossa responsabilidade, senão de conseguir realizar uma profunda reforma, pelo menos de denunciar o crime que está sendo cometido à toda uma geração de crianças e adolescentes, que logo serão os adultos deste Brasil, e da qual levarão da escola, que deveria formá-los cidadãos preparados para viver em sociedade e para trabalhar nela de maneira digna, com valores dignos, mas que, ao contrário, está reproduzindo o que há de pior desta sociedade.
Acho que a questão é exatamente esta: a escola está cumprindo a sua função oposta, está desformando, reproduzindo as barbaridades dos valores da sociedade, aprofundando as desigualdades, deixando como último recurso às famílias que tem recurso financeiro levar para bem longe seus filhos desta escola, ainda que na escola particular esta crise também se faz presente, mas sobre outra perspectiva, multiplicando nossa covardia de enfrentarmos o problema de frente, em vez de, enquanto professores, assumirmos nossa incapacidade e matricular nossos filhos em outras escolas, que não seja a que trabalhamos.
Ontem mesmo, em que tive um dia de cão na escola onde trabalho, fiquei tentando compreender de onde vinha aquela histeria quase coletiva de meus alunos de quinta série. E pensando como se portaria meu sobrinho, de três anos, uma das figuras mais interessantes que já vi na face da Terra. Como seria seu comportamento dentro desta escola. Provavelmente, se enquadraria em dois tipos clássicos de alunos: ou daquele aluno que procura aprender, respeita, mas de certa maneira se isola do resto, o que angustia o professor que enxerga nele o seu potencial mas não tem a mínima condição de lhe dar a atenção devida; ou daquele aluno que tem, como diria Ziraldo “macaquinhos no soltão”, mas que de qualquer maneira tornaria-se um problema em sala de aula.
Pretendo, aqui, procurar esclarecer a mim mesmo esta complexa equação que se me apresenta. Equação que na verdade se apresenta a toda a sociedade. Como construir uma escola, um sistema de ensino que possa ao mesmo tempo preparar o jovem para a vida em sociedade, formá-lo como cidadão, ensiná-lo os conteúdos básicos dos diversos campos do saber, mas fazendo isso de modo a da-lhes uma sentido, e conciliar isso com a realidade de vida individual, familiar e social de cada indivíduo, de cada grupo, de cada escola – de modo que a escola sirva efetivamente como mecanismos de equalização das potencialidades sociais – e não como reprodutora de uma sociedade anômica e corrompida, não como uma escola que reproduz o que há de pior na política, na economia, na lógica do livre mercado.
Procurar a resposta à esta equação pode ajudar-me a intervir, futuramente de modo concreto no sistema de Educação. Assim, devo apresentar, paralelo ao texto, lembranças de aulas, de conflitos, de agressões, mas também de boas experiências, bem como o relato de um diário do dia da aula. Acontece que este diário já deveria estar feito, pois não tenho mais a mínima condição de me manter em sala de aula, nestas quintas-séries, com um grande leque de alunos com graves problemas, dentro de um sistema educacional com mais problemas ainda, o que leva ao choque inevitável, onde o mais atingindo é o professor. Seria ingenuidade querer que o aluno de hoje tivesse a mesma relação com a escola que o aluno de duas gerações anteriores a dele tiveram. Isto é, permanecer em fila, quieto, com medo, mas sem reagir. Porque, hoje, eles reagem. A tudo. Á família desestruturada, ao mundo de consumo exacerbado, da qual eles participam apenas como desejosos, da extrema violência urbana, das drogas, e de uma escola que quer pó-los em fila, ensiná-los da mesma maneira que há 30 anos atrás, em tempos que a tecnologia anda quase a velocidade da luz, e sobretudo, com possibilidades cada vez maior de acesso a à todas classes econômicas. É no mínimo muita estupidez, do Estado, da Sociedade, e da classe docente, ainda insistir em manter 30, 40 alunos, quando não mais, nestas condições, na mesma sala. Se todo este caldeirão, ao se misturar, atinge com toda força o professor, lógicamente, ele vai reagir de alguma maneira. Pela minha experiência, reagimos ficando doentes, sobretudo doenças psíquicas – não é raro com Síndrome do Pânico, bem como com uma grande desmotivação e alienação frente ao seu trabalho, que não oferece nenhuma condição de efetivar-se, além de reagir, ele próprio com Violência – mistura essa que produz o fracasso escolar, que produz os índices que vemos divulgado do aprendizado dos alunos.
Assim, não é de se espantar que pais-professores não dêem, na sua maioria, aula para seus filhos. Afinal, eles sabem o que acontece do outro lado dos muros da escola.

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